quarta-feira, 11 de agosto de 2021

gentil

 “mas quem escreve não escreve com sentimento. é com técnica e leitura”. e todos os músculos pararam para responder a isso. ou a tentativa de resposta. não é a primeira vez que isso acontece, especialmente com ela. acho que outras vezes parei, pensei e rebati, mas não lembro bem, são essas intermitências do tempo presente. talvez não seja só isso, não é só uma pandemia, é uma distância grande, não tanto de idade dessa vez, mas ela tá em outra cidade, continuou a fazer na academia o que eu recusei.

“escrita criativa é um engodo”, era isso que eu queria falar. isso só existe nos departamentos que produzem críticos literários, todos frustrados, doutores em literatura comparada, todos pedantes. gente que não consegue escrever uma linha sem procurar um orientador. gente sem sentimento nenhum tentando escrever para impressionar outros que também não conseguem. gente mesquinha que ri de autores que estão publicados, pois se vangloriam que estudam isso. na verdade, gente como você estuda mesquinharia. isso seria demais, ela é muito doce. relevei, não rebati, vi o vestido vermelho na foto, lembrei dela com outros vestidos. de como seria ela sem um deles, apesar de achar que não será nada demais. preferi ser gentil e esquecer, esperar outra mensagem. e elas vieram e ficou para trás essa.

e sinto mais uma vez a mesma sensação: é melhor ser gentil do que rude. pois mesmo achando que não será nada demais, poderá ser algo, uma surpresa. como a última, ainda que eu esteja indeciso sobre, ela é chata e eu não tenho assunto. elas não viram números, viram momentos, acho que a reciproca é verdadeira. posso estar mentido para mim mesmo como um canalha que ainda acredita em si. como um canalha que senta o dedo, fala umas besteiras, leva um papo numa boa justamente para ter mais um momento. é só necessário isso. não muito mais porque me canso depois.

ela não é chata, só está lotada de academia na cabeça. provavelmente a conversa possa melhorar a sós, as posições discordantes entedidas frente a frente. um bom papo, uma boa tarde, uma boa noite. uma outra surpresa, um outro momento, um outro vestido no chão. a raiva de rebater, o confronto, entre muitos, que eu não consigo mais calar talvez se torne um bom debate sobre a forma e o conteúdo, de como eu detesto que o primeiro seja mais relevante porque nessas aulas de escrita criativa se produzem números, não produzem momentos. é a partir da dialética que a boa literatura aflora. é a partir da dialética que forma e conteúdo se casam e mostram um mundo que existe entre um eu-personagem e o outro-sociedade. é pela dialética que se faz as coisas. é por ser canalha que eu sou gentil.

terça-feira, 8 de maio de 2018

V


está amanhecendo, são 6h, o café ainda quente. a janela de frente para o nada, de frente para o céu, de frente para o mundo. que se descortina, o vento da manhã, o frio da madrugada que vai embora, mas que voltará amanhã, e depois. as andorinhas, ou o que quer que seja voando em bando, um v que se forma, umas batendo nas outras, tentando realizar a formação. uma disputa. em direção ao mar, em direção à comida, em direção ao fim da fome. obra conjunta, solidariedade, organização, mas para a caça. e me pego pensando na força que temos, na força conjunta. no encontro, no seminário, na roda de conversa, na organização no local de trabalho e fora dele. mas as andorinhas, ou o que quer que seja aquilo, vão caçar. seriam exemplo válido de organização e resistência? só por estarem juntas e organizadas de uma forma inteligente, ou mais ou menos coesa e racional? e o café começa a esfriar, consigo bebê-lo agora. o cigarro já na metade, o ronco no outro quarto. não sei se pertenço aqui. e a andorinha-que-quer-que-seja continua. uma outra formação em v, e mais outra, e uma quarta. e algumas vão avulsas, mas encontram uma formação mais à frente. e isso sempre foi assim, desde o triássico, jurássico, cretáceo ou mais alguma etapa da nossa divisão geológica, que nunca iremos alcançar. apenas os ossos. ou os ovos. as folhas. que rezam aos deuses que o ovo do novo mundo chegue. o café acabou, o cigarro antes, o ronco continua. toda a incerteza também.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

cioranica I

talvez o passado seja uma gaveta bagunçada que não deve ser mexida. por medo, por receio. que vale o esforço? para que o esforço? a memória é um artefato atroz, sob o signo da derrota iminente. o que ficou para trás é lembrança, mas a viva lembrança se desfaz quando do presente. o futuro é uma grande colagem de erros, máximas perdidas, lágrimas choradas, certezas vencidas. que é o presente então se não um intermezzo entre o que deu errado e o que pode dar errado? de novo?

o sol da praia, o vento úmido, a sensação de que as coisas poderiam mudar, nada disso é verdade quando vistos no passado. porém eram presente, porém eram algo, porém eram uma possibilidade. mas as possibilidades se esgotam, as certezas se resvalam e o que fica é um vazio. um vazio, um presente, um esgotamento do que não pode ser. a vida é uma incerteza que não se esvai, que não se esgota, que simplesmente é. um eterno presente entre passado errado e futuro errôneo.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

um ventilador

era um ventilador de chão pra dois. subia a ladeira, quase sem aguentar dentro da bermuda, tocava a campainha da vila já vendo você sair de toalha, com a cabeça molhada, sem sutiã, mal cabendo a blusa furada e as alças arregaçadas. quando vinha uma alça caída, a bermuda lembrava e molhava. teu beijo com cheiro de banho, teu quadril ainda frio da água. teu sorriso, porra. a vontade de meter a mão por baixo da blusa, arrancar a tua bermuda puída, puxar tua calcinha pro lado e enfiar a cara no teu grelo sentido tua buceta raspada. ou de noite, esperando a janta, a mão na tua virilha, teu peito do rosa pro bege. podia pegar fogo na cozinha que eu te chupava ali mesmo. o colchão rasgado no meio do chão, as roupas sujas e limpas juntas. mesmo com a idiota do quarto do lado, só pensava em te comer, em você em cima de mim. teu peito balançando. teu mamilo duro e teu cabelo na minha cara, no meu peito, na minha boca. sentindo você quente por dentro, você sempre em cima de mim, sentando forte, socando a parede. o cheiro de porra e as infinitas camisinhas jogadas, abertas, era o nosso cheiro naquele quarto. era tua buceta no meu pau na baixada, era a gente sendo feliz. era um ventilador de chão pra dois, porra.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

vendo

vendo. diz a placa. dois telefones, mas está ali há meses. difícil vender por aqui. bairro caro, mas que não tem nada. eu não tinha reparado as outras vezes, só reparei quando resolvi fumar ultimamente na sala. ela tem uma varanda. o que aumenta o preço de venda. nos últimos dias, ou semanas, não sei, parece que ela mora sozinha. já vi um casal algumas vezes lá, um cachorro. nem sempre. tenho a visto mais que os outros. fumando. em cima da placa de vendo. vendo. filtro branco? amarelo? 50? 60 anos? não sei dizer. assim como não sei como reparei que ela também me percebia. sempre desviei o olhar, nunca me detive, mas nas ultimas semanas, ou dias, tenho parado para vê-la. fumando. eu e ela. o meu é sem filtro, palha, o mais barato que tiver. talvez a menina seja filha dela, é loura que nem ela, mas o cara também tem cara de filho. não sei de quem é o cachorro, poucas vezes o vi. achei que fosse do casal, se é que são um, mas não sei se moram lá. um? ou dois quartos? o dela é qual? ela sempre acende o cigarro dentro da sala e depois vai fumar fora, fechando a porta de vidro. talvez nem sempre, mas nas últimas vezes também reparei nisso. algumas vezes a vi de robe. mas só prestei atenção quando a vi de moletom. estranho. talvez algo no moletom. ou o frio. ou minha cabeça mesmo. o que está coberto, sem se saber. assim como não sei dizer quais são os telefones das duas placas de vendo. solteira? casada? mora com os dois ou sozinha? não sei se ela trabalha, mas acaba que os cigarros, o meu e o dela, coincidem nos mesmos horários. agora fui fumar esperando vê-la. erro meu. não é assim que funciona. como será a cama dela? e seus peitos? sei que são pequenos, ela é esguia. o cabelo não é longo, mas também não é curto.  como ela é de quatro? conserva os pelos ou se raspa toda? 18h, o sino da igreja. arturo sandoval. talvez ela esteja lá enquanto eu estou aqui na sala digitando. eu acabei um cigarro e ela não estava lá. não foi a primeira vez. bom, pelo menos foi a primeira depois que eu a notei. acho que o nome eu nunca vou saber. talvez ligando para os telefones. mas com que propósito? “alô, gostei do apartamento, mas queria mesmo era fumar um cigarro depois de te comer.” muito sujo? ou infantil? a luz da rua reflete em mim e nela. eu a vejo com mais sombra que luz. talvez a minha cara fique estranha com o efeito amarelo. a bateria do computador tá baixando. queria outro cigarro, mas os meus estão acabando. talvez ela olhe por olhar, ou mesmo pode estar olhando para outro ponto que não o meu apartamento, que não a sala, que nem seja esse prédio. mas eu fiquei vendo. ela não olha. entre uma tragada e outra, guimbando ora na rua, ora num cinzeiro. é para mim. 20? 30 anos? talvez ela se pergunte. talvez não. mas ela não desvia o olhar. como se convidasse. “é, estou vendo um cara de 30 do outro lado da rua fumando, quero foder ele”. aham. acredite nisso. quero outro cigarro. tenho mais dois pela metade. as duas placas de vendo. estou a vendo agora. vendo.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

olhos

eu sempre confiei nos olhos de um cão. até que ele veio. rápido, miúdo, e galego. os carinhos que pede são insinceros, sua expressão é vaga, o olhar que dá vacila. nunca sei bem o que quer, se quer por bem ou por mal, se realmente quer aquilo ou finge querer só para mostrar que pode querer algo. e isso não quer dizer nada, ele sabe disso. mas sua expressão vacila, seu corpo vagueia, seus olhos mentem. seja por que é próprio de sua raça, uma genética que não pode negar, um instinto que não vai perder. seja por que tem um outro maior que ele para lhe ofuscar, para lhe dominar, para lhe morder. porém o outro ele desvencilha, ele dribla, ele engana. mas o outro, é um como ele. eu não sou como ele, e ele sabe disso, mas seu olho permanece o mesmo para o outro e para mim. ele não consegue fugir disso, é de sua natureza, é de seu instinto, é sua tônica. a minha é saber que seus olhos não são de confiança.

segunda-feira, 5 de março de 2012

o fim

eu ouvi a música vindo da sala. os acordes, os versos, a batida. o fim. o único amigo. entre o bife e o arroz. entre o gole d'água e a mastigação. como se a cozinha virasse um grande pântano. um estuário. um rio. tudo se afogou nas emoções. escutei as batidas da musica. cooperavam com as do meu coração. o fim. o acaso de os acordes chegarem aos ouvidos. o medo de não conseguir. o fim. a mudança repentina nos canais. e lá se fora ela. do eco da sala até a cozinha. mas de alguma forma continuara. sem parar na minha cabeça. como uma música louca de um erich zann. hipnótica. fazendo tudo ressoar mais tranquilo, mais pacífico. porém mais estranho, mais lunático. o fim. o fim estava próximo. o fim das extorsões, dos litígios, das agruras. o fim de tudo. apenas subir o rio era uma resposta. a única resposta. a resposta. resposta. para o fim.